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de nós, em nós, a sós

Sonhei que estávamos andando de carro, eu dirigia e você me dizia que queria me mostrar uma nova canção que tinha escutado e, ao escutar, lembrado de mim. Íamos por uma estrada que margeava uma montanha, o céu estava azul e fazia calor, um calor gostoso, confortável. Era quase fim de tarde. As janelas do carro estavam abertas e meu cabelo voava com o vento. Eu me sentia leve, estava sorrindo, feliz. Me sentia enfim tranquila. Completa. Você usava meu celular para buscar a tal canção, mas não a encontrava. Tentava de tudo - Google, Youtube, Spotify e nada. Praguejava um pouco por não a encontrar em lugar algum. Era como se ela só existisse na tua cabeça. Eu pedia para você cantar ela para mim e você fazia alguma graça dizendo que não. Eu insistia. Perguntava se você queria que eu fechasse os olhos para não te ver cantando, só ouvir. Você dizia que preferia que eu permanecesse de olhos abertos para gente não bater o carro. Ríamos juntos. Um tempo depois eu decidia que já era hora de parar o carro, "quero te ouvir cantando" eu dizia. Você já sem graça falava não. Parei o carro no alto de um morro; lá embaixo um vale com casas, um rio, as montanhas cobertas por florestas e um campo de flores alaranjadas. O sol já estava se pondo. Eu arrastava uma manta para fora do carro e subíamos no teto do jeep. Nos sentávamos lá observando o por do sol. O som do vento e de alguns pássaros distantes era tudo que se ouvia. Ficávamos ali, nós dois lado a lado, sem nos tocar, mas sendo tocados pela imensidão à nossa frente. Eu decidia deitar no seu colo. Olhava para cima, via teu rosto e fechava os olhos. Depois de um tempo, enquanto você passava os dedos entre meus cabelos, já quase na penumbra da noite, você começava a declamar baixinho a letra da canção. "...mesmo que tu decidas ir embora de nós, em nós, a sós, tu sempre terás um lugar, um afagar, um desabafar no meu coração..." Tu repetia esse verso e cantava mais alguns - que não me lembro agora como eram. Eu, que permanecia de olhos fechados, percebia que você estava com lágrimas nos teus. Pegava tuas mãos e as trazia para perto da minha boca, depositando nelas um pequeno e suave beijo. Num rompante e aos soluços, tu me puxava e me abraçava forte. Eu te abraçava de volta e cochichava repetidas vezes que ia ficar tudo bem. O soluço parava, as lágrimas cessavam, tua respiração voltava ao normal. Eu tentava me afastar, queria abrir os olhos e te olhar. Você não deixava, "quero morar nesse abraço" dizias. Morávamos no abraço por alguns instantes mais até você o desfazer. Era a minha chance de abrir os olhos e te ver. Sentindo teu rosto se aproximar do meu, eu enfim abro os olhos e enxergo os teus, uma mescla de histórias traduzidas na cor castanha da terra entrelaçada com uma rede de sonhos brilhantes na cor do mel; "são os olhos de quem tenta me ver por inteira e numa súplica silenciosa pede pela mesma coisa", pensei. Os pares de olhos se encaram e sorriem. Eu então aproximo meus lábios dos teus. Antes de beijá-los, sinto tua respiração quente. Nossos narizes se afagam. Quando enfim nossos lábios se encostam eu me desmaterializo e me transformo em milhares de micro borboletas alaranjadas que começam a voar ao teu redor. Tu primeiro leva um susto, mas depois começa a sorrir. As borboletas te acariciam, tu gargalhas enquanto elas, pouco a pouco, começam a voar em direção ao céu noturno.



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